quinta-feira, 8 de maio de 2008

Salvem o português!

"Falando do torturador francês Aussaresses, que entrevistou, Leneide-Duarte Plon (acho que foi traduzida) escreveu: "E vai além, ao relatar que o ex-presidente J. Baptista Figueiredo, então chefe do SNI (Serviço Nacional de Inteligência) o telefonou para dizer que seus homens haviam torturado e matado "um francês subversivo", em referência a Laurent Schwartz" (FSP DE 04/05/2008)."

Esse "o" como objeto de "telefonou" é um bom exemplo de hipercorreção: o velho Mattoso constatou há quase 60 anos que estamos abandonando a série "o / a / os / as" e substituindo-a por "ela / ela / eles / elas" (especialmente na fala). Quando queremos falar bonitinho, acabamos empregando "lhe" por "o / a" (basta ver convites, mas o fato salta aos olhos em muitos outros lugares). E quando cuidamos muito para não errar, como nossa competência no uso desses pronomes desapareceu há tempo, exageramos, fazendo voltar o velho "o" mesmo quando não é o caso. Foi o que se deu nesse exemplo. (Textinho meu sobre essa questão está na revista Língua Portuguesa que deve ir às bancas dentro de alguns dias).
Falando dos famosos, a propósito do último caso Ronaldo, o ombudsman da FSP escreveu (04/05/2008): "Existe uma indústria que vive da exploração da imagem desses personagens "olimpianos", fenômeno típico do século XX: gente famosa não só pelo que fazem, mas pela vida que levam, como define o ensaísta Clive James" (negritos meus).
Nove em cada dez estrelas da preservação da língua, seja em blogs, seja em sites, seja em jornais, seja na TV se escandalizariam com esses verbos no plural (fazem, levam) concordando com "gente". Se fosse um Machado ou um Alexandre Herculano, o ombudsman seria promovido a estilista, a usuário de figuras de linguagem (duas silepses em um só parágrafo não é para qualquer um!!) que indiciariam algo muito profundo... Como é um jornalista, pode ser objeto de gozação dos pares, manual de redação na mão. Cada um se diverte como pode.
Na verdade, o que há de mais estranho nesse texto não é a construção gramatical, é o verbo "definir": afinal, onde está a definição? O campo dos verbos que introduzem citações (os chamados dicendi, isto é, de dizer) está obviamente balançando: leio muito que Fulano relata quando cita e que cita quando relata, sem falar no grande coringa coloca. Nada contra os novos usos, porque os sentidos sempre podem mudar e o fazem mais ou menos imperceptivelmente na nossa cara.
O que me faz reagir, quando posso (lendo trabalhos de meus alunos), não é o erro, mas a falta de análise mais fina que transparece na forma de reproduzir atos de fala. Sou um pouco antigo em relação a isso (também a isso): se Fulano falou, então falou; se declarou, declarou; se confessou, confessou; se ameaçou, ameaçou... (e não disse ou colocou etc.). Não se trata de erros gramaticais, insisto, mas de análise da fala citada. Freqüentemente, aposto no talento de um aluno com base em indícios desse tipo. Que eu lembre, nunca errei.
Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Lingüística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua e de Os limites do discurso. Fale com Sírio Possenti: siriopossenti@terra.com.br

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